quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Inadequado (por Elineu Rosa Tomé)


Inadequado
(por Elineu Rosa Tomé)



Eu tinha quatro anos quando o vi pela primeira vez. Eu estava sozinho no quarto de minha avó materna e minha memória ainda se solidificava, no entanto foi possível gravar o que senti. Não o que vi, pois o que enxerguei tornou-se uma imagem distorcida como nessas fotos mal batidas. Só fui ter uma imagem clara dele quando aos sete anos de idade ele apareceu colado a mim no corredor (antes) vazio da escola.
Era um menino magro, um pouco mais alto do que eu, branco, cabelos pretos e olhos largos. Perdi a força das pernas como num sonho em que tentamos correr e as pernas pesam, senti o suor descer pelas têmporas e calei-me. Ele apenas me olhou sorrindo e isso era o pior nele, seu sorriso. O menino tinha essa estranha capacidade de causar-me tamanho mal-estar, seguido de um pânico mudo e inerte. Em todas as suas horrendas visitas, calado eu ficava durante e calado permanecia depois, sem contar a ninguém. Nunca disse uma palavra sobre suas aparições, mesmo porque ninguém acreditaria.
Eu sempre soube de que estava só nesse enfrentamento silencioso e também não queria correr o risco de irritá-lo. Suas vindas tornaram-se frequentes e o medo (mais intenso) já não cessava quando ele não estava por perto, continuava e minava tudo em mim, o tempo todo. O medo tornara-se meu companheiro de corpo. Aos nove anos de idade, fui considerado um garoto inadequado, quieto demais, medroso demais, estranho demais.
Na primeira vez que entendi o que pensavam sobre mim, na primeira vez que descobri qual era o conceito que tinham a meu respeito foi também à primeira vez que liguei essa desgraça àquele garoto. Culpado por não saber resolver aquilo experimentei o ódio de uma forma pouco conhecida para uma criança.
Aos 10 anos de idade no fundo do quintal de casa a sombra de uma mangueira eu o vi encostado no muro de taipa. Não apenas me observava, mas ria um riso de escárnio, de zombaria.
A raiva que senti foi mais forte que a ansiedade e perguntei gritando: “De que está rindo?”. “De você.”. Respondeu.
A raiva aumentou e disparei perguntas e acusações. Seu riso aumentou, agora gargalhava. Levantei-me com dificuldade, o ar faltava, sentia o coração, as pernas como que enraizadas.
Puxei de dentro a questão principal: “Quem é você?”.
“Satanás”. – Disparou com naturalidade.
Caí de costas como se tivesse levado uma rasteira. Sorrindo apareceu e gargalhando sumiu.
Aos 25 anos de idade começo a escrever esse relato. Resolvi isso hoje porque ontem depois de 15 anos desde o ocorrido à sombra da mangueira ele nunca mais aparecera. Até ontem à tarde quando depois de ter arrumado algum dinheiro para comprar vodka, consegui uma sombra na rua onde parei para escapar do sol.
Parece que ele também gosta de sombra. Olhei sem querer e o vi. Ainda menino, olhos largos e um sorriso agora de satisfação. Olhou-me por inteiro. Deve ter notado as roupas gastas e sujas, os olhos murchos, o inchaço no rosto, a falta de forças para sentir medo, a vontade de morrer exalando de meu corpo. 
Hoje procurei no dicionário o que quer dizer a palavra: satanás. Significa adversário. Ele não aparecerá mais.
O menino conseguiu o que queria, meu adversário venceu.

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